Como se existisse prazer em sentir dor,
mágoa e
ressentimento...

Somos quem não queremos tantas vezes...
tantas quantas as que negamos!

Porque afinal nós somos muitos.
Um para cada qual,
diferentes e distintos.

Estamos longe de sermos um só,
o mesmo e um único entre tantos que nos rodeiam.

Somos plurais.

E a utopia está em um dia virmos a ser para todos eles aquilo que sentimos ser para nós - únicos.

(...) Ah seja como for, seja para onde for, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar.
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstracta,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!

(...)

Quero ir convosco, quero ir convosco,
Ao mesmo tempo que vós todos
Pra toda a parte pr'onde fostes!
Quero encontrar vossos perigos frente a frente,
Sentir na minha cara os ventos que engelharam a vossa
Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos
Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas
Chegar como vós, enfim, a extraordinários portos!
Fugir convosco à civilização!
Perder convosco a noção da moral!
Sentir mudar-se no longe a minha humanidade!
Beber convosco em mares do Sul
Novas selvajarias, novas balbúrdias da alma,
Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito!
Ir convosco, despir de mim - ah! põe-te daqui pra fora! -
O meu traje de civilizado, a minha brandura de ações,
Meu medo inato das cadeias,
Minha pacífica vida,
A minha vida sentada, estática, regrada e revista!

(...)

Fernando Pessoa
de "Ode Marítima"